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Pra doido ler

sábado, agosto 12, 2006

As quatro estações


No dia em que ele tombou, numa manhã fria no final daquele inverno, caiu com o rosto para cima, mas ela não o reconheceu. Viu a movimentação, passou perto até, mas não conseguiu reconhecer quem estava ali.
O processo foi lento, mas havia sido concluído, enfim. Fazendo-se valer do olfato ruim, começou, mesmo que inconscientemente, a esquecer o cheiro. Foi fácil até. Em quatro primaveras, conseguia discernir o cheiro de algumas flores, mas não o dele. Esquecera o cheiro natural e também o artificial, nascido de desodorantes, cremes de barbear e perfumes.
Depois, devagarzinho, começou a esquecer o rosto. Parecia que ia ser difícil, mas, de repente, em uma tarde quente de verão, notara que tudo virara uma coisa indefinida e embaçada, e ela já era incapaz de descrever aquela face com clareza.
Em seguida, esquecera os detalhes das mãos, aquelas belas mãos que haviam passeado tanto pelo seu corpo e por seus cabelos. No começo desta etapa, também chegou a pensar que seria impossível, porque ela realmente era apaixonada por aquelas duas mãos e por cada veia grossa que pulava em direção aos dedos longos. Mas esqueceu. Na mesma noite daquele outono, assim como caem as folhas, caiu também a imagem dele concentrado, deitado na rede lendo um livro qualquer ou folheando o jornal, muito calado e quieto.
Por último, e desde sempre ela soubera que seria a última etapa, ela esqueceu a voz. Chegou a tentar capturá-la, ecoando por um labirinto sem fim. Sentiu medo de não agüentar a trilha sonora do mundo sem aquela voz. Mas a tentativa de guardar a voz em uma caixinha secreta, sem que ninguém percebesse, foi em vão. Alguns invernos depois, no mesmo inverno em que ele tombou, com o rosto e a barriga para cima, ela já não se lembrava também da voz.
Quando ele gritou, antes de tombar, aquela era uma voz qualquer. Desesperada, é verdade, mas uma voz qualquer. Ela nem ouviu, porque os carros passavam. E no mesmo instante, quando já era quase primavera, ele aprendeu, da forma mais empírica possível, que arrependimento mata.

3 Comments:

At 5:05 PM, Anonymous Anônimo said...

Amargo gata, mas lindo =)
Amo voce.

 
At 9:22 PM, Blogger Rod said...

Por acaso é sobre a pessoa que estou pensando?

 
At 6:16 PM, Anonymous Anônimo said...

lindo, lindo! Demorei para ler, mas, amei!

 

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